Um antigo debate, adormecido
desde o impeachment de Dilma Rousseff, voltou à tona no domingo, 25: quantas
pessoas estavam na avenida Paulista? Jair Bolsonaro convocou um ato para reagir
à investigações que o acossam na Polícia Federal e no Supremo Tribunal Federal
(STF), mais precisamente à que apura uma trama para golpe de Estado. O
ex-presidente conseguiu a foto que queria, com a avenida preenchida em seu
ponto mais disputado, mas um número divulgado pela Secretaria de Segurança de
São Paulo ressuscitou a disputa sobre os números.

“Não tivemos ocorrências
relevantes, mesmo com público de 750 mil pessoas na avenida e em todo o
entorno. Parabéns PM e PC”, escreveu o secretário de Segurança Guilherme
Derrite em seu perfil no X, ex-Twitter. Questionada sobre os números, a Polícia
Militar (PM) informou à Folha de S.Paulo que não faz esse tipo de conta. Não
faz desde os protestos pelo impeachment de Dilma, iniciados em 2015, exatamente
para não dar margem às suspeitas que surgiram naquela época, de direcionar os
números.
A dificuldade de medir esse
tipo de evento público sempre deixará em aberto o número exato — e mesmo o
aproximado — de manifestantes. Os responsáveis pela manifestação arriscaram o
número de 2 milhões. Já o Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade
de São Paulo (USP) estimou 185 mil pessoas na avenida Paulista às 15h, horário
marcado para o início do ato.
Metodologia
Os responsáveis pelo
levantamento da USP o explicaram assim:
“Foram tiradas 43 fotos entre
as 15:00 e as 17:00. Onze fotos foram selecionadas de forma a cobrir a extensão
da manifestação na avenida Paulista, sem sobreposição. Cada uma das fotos foi
repartida em 8 pedaços. Em cada parte, foi aplicada uma implementação do método
Point to Point Network (P2PNet)1 que identifica cabeças e estima a quantidade
de pessoas em uma imagem. As imagens, reconstituídas, são apresentadas abaixo.
O método tem precisão de 72,9% e acurácia de 69,5% na identificação de cada
indivíduo. Na contagem de público, o erro percentual absoluto médio é de 12%
para mais ou para menos para imagens aéreas com mais de 500 pessoas”.
O secretário de Segurança de
São Paulo não detalhou o método que teria embasado o cálculo do número que
divulgou. Na época do impeachment de Dilma, instalou-se um debate sobre
metodologia que, no fim das contas, tentava aferir a relevância da manifestação
e seu consequente impacto político.
Bolsonarismo
Independentemente do número
exato, a história registra hoje que aqueles movimentos de rua foram essenciais
para a queda da petista. O que está em jogo atualmente, após o ato de domingo
(25/02), é a sobrevivência política de Jair Bolsonaro e, mais do que isso, do
bolsonarismo.
Assim como fez Lula quando
encurralado pela Justiça, Bolsonaro apelou às massas. A mobilização em torno do
petista não impediu que ele fosse preso, mas contribuiu para que ele fosse
solto e voltasse ao Palácio do Planalto, numa reviravolta inimaginável no
momento de sua prisão.
Já se sabe que a PF pretende
usar as palavras proferidas pelo próprio ex-presidente contra ele na
investigação sobre a trama golpista. Pode ser que, assim como Lula, Bolsonaro
venha a ser preso. Mas a história recente do Brasil mostra que isso está longe
de significar o fim de uma carreira política ou de um movimento.
Tamanhos
A última grande mobilização em
torno de Lula reuniu 58,2 mil pessoas na avenida Paulista em outubro de 2022,
para celebrar sua vitória na eleição, de acordo com o Monitor do Debate
Político no Meio Digital da USP. As motivações para os movimentos são diferentes,
mas é o parâmetro de comparação mais próximo possível no momento.
Mesmo analistas de esquerda
reconhecem hoje a força de mobilização da direita, principalmente na comparação
com a débil habilidade dos esquerdistas para animar as ruas. Sob esse ponto de
vista, Bolsonaro é hoje maior do que o descondenado, mesmo sem ter conseguido
reverter sua popularidade em votos o bastante para se reeleger.
“Estado de direito”
Esse é um fato independente do
que querem ou fazem os dois, do que podem oferecer à República ou como podem
prejudicar o país. E as implicações práticas desse cenário de forças dependem
de uma série de fatores — o papel do Judiciário é o mais relevante no momento.
O que se constata depois de
domingo(25/02), seja qual for o número exato de pessoas nas ruas, é que
Bolsonaro segue como a maior força política de oposição, e talvez tenha se
fortalecido nesse aspecto nos últimos meses, como a alegada vítima de um
sistema viciado.
Quem até outro dia bradava
contra o sistema eleitoral, pondo em dúvida as urnas eletrônicas, se reúne hoje
para pedir respeito ao “Estado democrático de direito”. É possível, legítimo e
até óbvio duvidar de seus motivos, mas o fato é que a conduta da cúpula do
Justiça nacional semeou o terreno onde Bolsonaro pretende colher agora.
Justiça
O desmonte da Lava Jato — e a
absolvição artificial de Lula e dos seus —, do qual participou e também se
beneficiou Bolsonaro, contrasta hoje com uma caçada implacável, e por vezes
atrapalhada, contra um grupo político que deu todos os motivos para se tornar
alvo de investigação.
O bolsonarismo foi à lona
depois dos atos de 8 de janeiro de 2023. Os apoiadores do ex-presidente
passaram um ano inteiro sem condições de sair às ruas, sob o risco de prisão. A
reação do STF ao vandalismo foi tão contundente que mudou o cenário político e
lhes deu o discurso de vítima.
Irônica e tragicamente, quanto
mais a Justiça pressiona Bolsonaro, mais fortalece seu movimento. O ato de
domingo foi a manifestação física disso, com 200 mil, 700 mil ou dois milhões
de pessoas.
*O Antagonista
Segunda-feira, 26 de fevereiro
2024 às 13:32