Desde o governo Sarney, o Brasil vive em
um peculiar sistema semiparlamentarista que foi denominado “presidencialismo de
coalizão“. Em essência, para garantir a governabilidade, os presidentes dividiram
a estrutura do governo (ministérios e entidades estatais) entre os partidos
políticos da base aliada, proporcionalmente ao número de congressistas de cada
partido. Esse sistema garantia a aprovação de projetos de lei e emendas
constitucionais de interesse do Executivo, além de protegê-lo contra eventuais
denúncias. Por outro, foi exatamente isso (a política do “é dando que se
recebe”) que levou aos estratosféricos níveis de corrupção no governo federal.
Pois
bem. O presidencialismo de coalizão entrou em crise profunda com a Lava Jato,
que expôs ao público as suas entranhas. No segundo mandato da Dilma, ele deixou
de funcionar, sendo restaurado brevemente no governo Temer.
O
governo Bolsonaro destruiu completamente o presidencialismo de coalizão. Não há
mais loteamento de cargos para os partidos da base aliada. Não há mais
mensalões ou qualquer sistema estabelecido de corrupção do Legislativo.
O
problema é que esse sistema não foi substituído por nenhum outro. Tornar o País
governável sem o “toma lá, dá cá” requereria uma espécie de revolução
institucional, com ao menos algumas emendas constitucionais para reformar o
sistema político. Isso não aconteceu, tanto por, obviamente, falta de apoio do
governo no Congresso quanto por outras razões.
A
conta não tardou a chegar. Já em 2019 foram aprovadas emendas constitucionais
que, longe de reformar o sistema político, garantiam aos parlamentares mais
verbas para suas bases eleitorais, retirando parte considerável dos escassos
recursos do governo federal (lembrem-se: o governo tem liberdade para gastar
apenas 8% do orçamento, o resto é despesa obrigatória).
O
golpe de misericórdia foi dado entre novembro e dezembro do ano passo passado.
A nova Lei de Diretrizes Orçamentárias criou, sem qualquer base constitucional,
duas espécies de emendas parlamentares: as de comissão e as do relator-geral.
Quando a Lei Orçamentária Anual foi publicado no início de fevereiro deste ano,
os ministérios se deram conta de que QUASE TODO SEU ORÇAMENTO FOI TRANSFERIDO
PARA ESSAS EMENDAS.
Do
dia pra noite, o Congresso passou a controlar, segundo estimativas, 93% DO
ORÇAMENTO DISCRICIONÁRIO FEDERAL. Isso é absolutamente sem precedentes. Alguns
ministérios não conseguem nem mais pagar passagens aéreas nacionais para os
seus servidores viajarem a trabalho. Vários programas podem ser interrompidos
já nos próximos dias.
De
fato, o que aconteceu foi uma mudança de regime político: sem perceber, nos
tornarmos parlamentaristas. Obviamente, o poder de controlar o orçamento não
pertence ao Legislativo, que não tem a competência para executar as políticas
públicas. Isso é inconstitucional, por afrontar a separação de poderes, e
operacionalmente inviável de se realizar.
Enfim,
o País pode entrar no caos em questão de semanas, pela ausência de execução de
políticas públicas essenciais à população, e o governo pode ficar literalmente
paralisado, incapaz de fazer nada.
O
responsável não é o Congresso Nacional como um todo, mas um grupo que está
conduzindo esse processo de forma insidiosa. Se nada for feito agora, não é
apenas o governo federal que será destruído, mas o próprio País, que se tornará
ingovernável, refém dos piores interesses políticos.
Cada
Poder agora precisa agir com decência e rapidez para evitar o pior. Ao
Executivo, cabe não aceitar acordos espúrios e dialogar com os parlamentares
que demonstraram não aceitar a manobra (e não são poucos!). Não há opção além
da luta pela retomada do controle do orçamento. Ao Legislativo, cabe corrigir seu
próprio erro, revogando imediatamente o sequestro orçamentário, sob pena de
cair em descrédito maior ainda com a população. Ao STF, se chamado, cabe
declarar liminarmente a inconstitucionalidade da manobra por ofensa à separação
de poderes. À população, finalmente, cabe pressionar o Presidente para que não
ceda e os parlamentares para que honrem seus mandatos; a pressão das redes
sociais pode ser decisiva neste momento.
(Com
o Terça Livre)
Sábado,
29 de fevereiro, 2020 ás 18:00
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