Dia
desses, relendo Cervantes, deparei-me com uma singular reflexão: “não há
recordação que o tempo não apague, nem dor que a morte não faça cessar”. Bons
tempos, aqueles de Cervantes - uma época na qual o mundo fazia mais sentido.
Hoje,
é bem verdade, saboreamos incontáveis avanços. Já fomos à Lua, e nos preparamos
para ir a Marte. Mas o fato é que o aprimoramento de nossa tecnologia
sobrepujou a evolução dos nossos cérebros, arrisco dizer que mesmo das nossas
almas. Nossos espíritos, infelizmente, não tem conseguido acompanhar a
fascinante velocidade dos avanços tecnológicos - e assim vamos nos tornando,
sem que o percebamos, uma sociedade a cada dia mais confusa e perplexa.
Sustento
minha tese com a morte. Antigamente, nos sábios dias de Cervantes, era mais
simples morrer. Morria-se, e pronto. A morte era permitida em qualquer lugar e
a qualquer momento.
Tudo isto mudou. Assim, por exemplo, os
habitantes da cidade de Sarpourenx, na França, só podem morrer se dispuserem de
uma cova no cemitério local - acredite, esta proibição consta de um decreto
municipal.
A
sanha invasiva dos burocratas não ficou só na França. Chegou à Espanha, onde,
na cidade de Lanjaron, por conta de obras de reforma feitas no cemitério
municipal, simplesmente proibiu-se a morte. Transcrevo o texto do decreto:
“Está proibido morrer em Lanjaron. Os infratores responderão por seus atos”.
Eis aí a prova de que a burocracia tudo pode e tudo supera - até mesmo a morte.
E
o bom e velho capitalismo? Antigamente restrito a esta vida, hoje já alcançou o
além. Que o diga uma empresa norte-americana que lançou no mercado “ingressos
para o Paraíso”. Por uns R$ 30, mais R$ 9 de frete, você recebe em casa o
bilhete, pessoal e intransferível, que deverá ser colocado em seu caixão.
Detalhe: a empresa avisa que não devolverá o valor pago caso o Paraíso não
exista.
Naqueles
velhos tempos mortos eram coisa séria. As pessoas tiravam o chapéu à mera
passagem de um cortejo fúnebre. O ambiente nos velórios era circunspecto e
respeitoso. Mas até isto já começa a mudar, conforme indica a atividade de uma
empresa norte-americana especializada em adquirir espaço publicitário em
caixões. Ela paga até uns R$ 190 por cada espaço publicitário.
Assim,
por exemplo, se o morto era motorista de caminhão, pense em um caixão enfeitado
com propagandas de postos de gasolina e óleos lubrificantes. Se veterinário,
com adesivos de marcas de ração para cachorros e por aí vamos. Fico a pensar na
urna funerária de um profissional do circo - um palhaço ou um domador...
Houve
um tempo no qual pessoas morriam e eram sepultadas ou cremadas em paz, sem
maiores problemas - e eis aí um sinal de respeito tanto ao morto como aos seus
entes queridos. Isto acabou. Hoje não raramente há que se esperar dias até que
a burocracia libere os corpos para suas famílias - principalmente se forem
miseráveis. E assim, nos confusos tempos atuais, até a paz dos cemitérios
depende da eficiência dos burocratas.
Este
o tratamento que temos dispensado aos mortos. A partir dele, que tal meditarmos
sobre como temos atendido os vivos? A quantas anda, afinal, o espírito cristão
por esta humanidade que tanto celebra seus avanços e descobertas?
O
fato é que diante de tantos exemplos, todos eles oriundos de países
absolutamente civilizados e altamente desenvolvidos, cheguei a uma conclusão: o
negócio é nunca precisar de ninguém, ser sempre saudável e jamais morrer!
*****Pedro Valls Feu Rosa é
desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.
Domingo,
22 de maio, 2016
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