Nos tempos da
ditadura militar, mordomia era algo tão banal e comum que intitulava uma seção
do Diário Oficial. Era abaixo mesmo da rubrica "mordomia" que se
especificava a relação de privilégios concedidos às autoridades em geral na
Esplanada dos Ministérios. Assim foi até o jornalista Ricardo Kotscho produzir,
para o jornal O Estado de S. Paulo, uma demolidora série de reportagens que
denunciou o exagero das benesses destinadas aos ministros e outras altas
autoridades do regime militar.
Depois disso,
regras foram determinadas para conter os abusos. Mas basta pegar um jornal de
qualquer época - antes ou depois da série publicada no Estadão - para perceber
que a mordomia é um mal crônico da elite política brasileira. Não começou quando
Kotscho a denunciou e não terminou depois da denúncia dele.
A forma como a
elite política brasileira parece considerar natural a apropriação do bem
público como se dela fosse, somada à total falta de preocupação com eventuais
abusos, parece ser uma marca de nascença deste país batizado Brasil. Na sua
origem, nosso país ganhou a associação de algumas características peculiares. A
primeira dessas peculiaridades foi o sistema de capitanias hereditárias. Esse
modelo foi uma invenção exclusivamente portuguesa. Na verdade, não foi usado
apenas aqui. Antes, já era usado com bons resultados por Portugal na Ilha da
Madeira e no arquipélago de Cabo Verde. Aqui, começou pela exploração da ilha
de Fernando de Noronha.
A capitania
hereditária, porém, transformava de fato o bem público em propriedade privada.
O sistema literalmente loteava o território do que seria o Brasil em enormes
fazendas destinadas a cada um dos capitães, delegando a eles a tarefa de
colonizar a terra. Em troca, os capitães pagavam impostos à coroa portuguesa.
Ainda que não tenha produzido para Portugal os resultados desejados, o sistema
de capitanias hereditárias durou cerca de duzentos anos, sendo extinto somente
em 1759. E deve ter deixado raízes na noção de que o uso público, no Brasil, é
propriedade da autoridade que se beneficia dele.
A esse início de
país como grande loteamento soma-se outra peculiaridade. O Brasil é a única
colônia do mundo que foi sede do império sem deixar de ser colônia. Quando a
coroa portuguesa resolveu, em 1808, pegar todas as suas trouxas e correr para o
Brasil fugindo das tropas de Napoleão, instalou aqui uma elite que não tinha
compromisso com o país em que vivia, mas com o outro, que havia deixado para
trás. Para a maioria dos historiadores, é a chegada da família real ao Rio de
Janeiro que marca o início do conceito de nação no Brasil. Longe de ser somente
negativa, é à vinda de Dom João VI para o Brasil que é atribuída a manutenção
da unidade territorial brasileira, que poderia ter virado vários países, a
exemplo do que aconteceu com o naco espanhol da América.
Por outro lado,
a presença de Dom João VI e sua corte fez com que o Brasil estabelecesse as
suas primeiras regras como nação baseado nos interesses de Portugal, e não nos
seus. Se o apreço da família real portuguesa pelas terras brasileiras puder ser
medido a partir de Carlota Joaquina, a mulher de Dom João VI, assim fez ela
quando embarcou de volta para a Europa, ao final do seu auto-exílio: tirou os
sapatos e bateu fortemente um contra o outro para limpá-los. "Desta terra
eu não quero levar nem o pó", teria dito ela.
No Brasil, ficou
o filho de Dom João VI, e foi ele quem proclamou a Independência, concedendo-se
o título de Dom Pedro I, "antes que outro aventureiro lançasse mão".
Ou seja: mesmo depois da independência, a elite brasileira continuava sendo
portuguesa. Vai saber a que interesses de fato ela servia.
Por: Rudolfo Lago – jornalista
Terça-feira, 18 de março, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário